terça-feira, agosto 27, 2013

Filmes em revista sumária #410


No meu tempo da Primária os coleguinhas de turma da fila de trás costumavam ser os repetentes e os mais mal-comportados, geralmente matulões. Depois passaram a ser aqueles cujo nome desgraçadamente começava por letra lá mais para o fim do abecedário. Muito mais tarde passaram a ser ‘apenas’ os mais cábulas, ou os mais tímidos, de entre os futuros doutores. Em «Dentro de Casa», porém, é toda uma perfídia insinuante e sub-reptícia que por lá se senta e habita por detrás do rosto pueril e falsamente inocente daquele aluno solitário e calado, que destoa do resto de classe pela sua redacção de narrativa inspirada e contagiante, em que apela a uma espécie de ‘voyeurismo’ imaginário de quem a lê e ouve, e que vai aliciando progressivamente um simpático professor de meia-idade (escritor falhado) numa espiral ficcional que em breve se confunde com a realidade dentro da sua própria casa e do seu próprio eu.

François Ozon está nas suas ‘sete quintas’ ao bem exercer a sua reconhecida arte de melhor trabalhar a língua francesa, falada aqui em diálogos sem mácula, e na habilidade de gerir de forma exímia as expectativas de quem está do lado de cá do écran, bem assim na excelência da direcção de actores, explorando-lhes os rostos e as expressões em grande-plano (Fabrice Luchini é talvez o maior comediante francês da actualidade), e na capacidade de ao virar do texto nos socar bem fundo mas com souplesse, não fosse ele o autor de «Sous le sable».

No final (a lembrar o velho Hitch), que não é, certamente, do que todos estaríamos à espera e, bem vistas as coisas, desejaríamos, não senhor, o cinema de Ozon está igual a si próprio deixando-nos a penar da triste sina: o que parecia ser simples e estar resolvido, mais comédia menos tragédia, volta a ter tudo em aberto, não restando alternativa ao espectador senão manter-se imerso e ser usado naquela ‘personagem’ do professor que passou a ser sua. Pode não vender em telejornais mas assim se faz narrativa da boa.


In O Diabo (27.8.2013)

terça-feira, agosto 20, 2013

Filmes em revista sumária #409


«O Mascarilha» (Lone Ranger no original e ‘Zorro’ nos belíssimos fascículos ilustrados da saudosa editora brasileira EBAL, que ali estão na prateleira…) é um prodigioso filme de aventuras e obrigatório neste Verão, não fosse ele obra e graça (e tem-na com fartura) do realizador Gore Verbinksi (imbatível neste tipo de filme desde os seus piratas das Caraíbas), do produtor Jerry Bruckheimer (há alguma acção bem feita que não o tenha por detrás do grande ou do pequeno écran?) e do compositor Hans Zimmer (idem), pois então, trio este completado pelo actor inigualável que dá pelo nome de Johnny Depp, o rei dos mascarados, aliás.

A aventura é intrépida e ininterrupta, como é obrigatório, o humor corre à velocidade da bala e até há lugar à homenagem ao imortal «Aconteceu no Oeste», com cenas decalcadas do épico de Leone, como a da família em casa, com o poço e o esvoaçar das aves, aqueloutra da estação com o depósito de água, ou a do travelling ao longo do campo de visão acompanhando a montagem dos carris de ferro, com muitos figurantes. Tal qual se reconhece facilmente o velho e celebérrimo acorde de Morricone no tema principal de Zimmer. Há planícies e desertos com fartura, cidades do velho Oeste, em cenários naturais e de cartão, com efeitos especialíssimos da Industrial, Light & Magic, obviamente. Há índios e soldados da 7ª e, claro, vilões capazes de tudo por uma onça de prata.

A história aos quadradinhos é cruzada com uma outra da autoria dos autores do filme, supõe-se, em que o Lone Ranger é desajeitado e pouco dado a carregar no gatilho, faz inúmeras gaffes e dá de bandeja ao seu parceiro Tonto as ‘despesas de manutenção’ do filme. Nesta mistura de narrativas, este último, que é figurante numa feira de diversões dos anos 30, conta as aventuras de si próprio e do seu parceiro a um pequeno mascarado a rigor e daqui se parte para a Aventura.

Saldo final: Depp, perdão, Tonto - que tem um visual digno da galeria gótica de Tim Burton – e o seu corvo metem todo o filme no bolso do primeiro ao último fotograma em que entram. Tudo aponta para uma Parte II. Oxalá.


In O Diabo (20.8.2013)

quarta-feira, agosto 14, 2013

Filmes em revista sumária #408


«Só Deus Perdoa» vale pelo papel brutal de Kristin Scott-Thomas e pela prestação de Vithaya Pansringarm, que joga kick-boxing, canta e ... move-se como mais ninguém (aliás, imagino que seja difícil locomover-se com um espadalhão enfiado nas costas da camisa...). No resto é muito mais videoclip do que filme verdadeiramente dito, com nítidas aspirações a objecto de culto, quiçá por 'beber' escandalosamente de Wong Kar-wai e Lynch mas sem nunca sequer chegar-lhes aos calcanhares, claro. Ficam a côr e a música, como bom videoclip escanifobético que é, e que não dá bom crédito aos filmes thai. Ryan Gosling não convence absolutamente ninguém nem a sua 'mãezinha'.

terça-feira, agosto 13, 2013

Filmes em revista sumária #407


No final de «The Iceman» (inglória e bastardamente traduzido por «Um Homem de Família» - aliás, convém estar atento ao que se vai dizendo em inglês na tela porque ao longo do filme as gralhas na legendagem são mais que muitas…) há um não sei quê de desilusão colectiva que toma conta dos espectadores, uma visível amargura de ‘sabe a pouco’, talvez porque se esperasse mais ab initio, talvez porque o filme seja realmente um bom filme mas pudesse ser afinal muito melhor se tivesse sido feito, por exemplo, por Scorsese, quem sabe.

Os (bons) ingredientes à partida estão lá todos e à disposição de quem o souber usar: a personagem central é um hitman, que vive uma vida dupla entre a família a quem engana e que o adora, e uma indiferença brutal e gelada que lhe serve de sustento e por isso mesmo o filme tem uma intriga dual perfeita, ainda por cima porque tudo, ou quase tudo, será verídico e terá sido escrutinado por documentários do conhecimento público. Além disso, os anos em que a acção se desenrola são aqueles que melhores filmes policiais deram ao grande écran, se descontarmos, obviamente, os do prodigioso período de ouro, a P/B, dos estúdios norte-americanos; e o actor principal é um colosso (em todos os sentidos) chamado Michael Shannon, cujo rosto é das coisas mais terríveis (no bom e no ‘mau’ sentido) do cinema actual, com uma carreira que ninguém saberá prever onde chegará.

No entanto, há qualquer coisa que impede que o filme faça mesmo faísca e nunca chegue a descolar de um registo monocórdico, ainda que impossível de se desgostar. E não é a montagem a responsável por essa semi-desilusão, não, nem a fotografia, muito menos a reconstituição histórica ou os actores secundários (Winona Ryder está impecável, num regresso que se saúda). Não, a culpa, essa, deve ser mesmo só do israelita Ariel Vromen, que, basicamente, não teve ‘unhas para tocar guitarra’, só pode.


In O Diabo (13.8.2013)

sexta-feira, agosto 09, 2013

Obituário: Karen Black (1939-2013)


Muito filme vi eu com Karen Black nos gloriosos anos 70, em que fazia uma média de 4-5 filmes por semana em outros tantos cinemas diferentes nesta Lisboa hoje irreconhecível. E era uma força da natureza, esta rapariga, talvez o rosto mais malandro de todos desse tempo, e tinha piada, oh se tinha. Que pena :-(

terça-feira, agosto 06, 2013

Filmes em revista sumária #406


Socorremo-nos do próprio Brian de Palma para o título desta crónica sobre o seu mais recente filme: «Paixão». Abusando, portanto, da paciência dos leitores e arriscando sérias represálias por parte dos mais sérios dos incontáveis fãs do autor de «Vestida para Matar» (a que já pertencemos), ele que foi tantas vezes (e muitas delas injustamente) vilipendiado por, afinal de contas, levar a sério esta coisa da cinefilia e não se importar em nos mostrar a todos o seu gosto (obsessivo) em decalcar o mais que pode o ‘seu’ (nosso) Hitchcock. Culpado? Não, tivéssemos nós o talento de De Palma e fá-lo-íamos também.

Surpreendentemente, o filme apresenta dois registos distintos, dividido que está não ao meio mas de 3 para 1. Dois terços do filme são de um cinema que não é o de De Palma desde «O Fantasma do Paraíso»: a câmara está calma e não inventa, a intriga é escorreita e não manipula o espectador, o tom é sóbrio e ‘europeísta’, e até Hitch é apenas decalcado ao de leve, neste ou naquele plano mais ousado. No último terço, porém, quase tudo é do mais puro estilo De Palma: o que parece não é (as loiras viram morenas e as morenas, loiras, num ‘quem trai quem’ virtuoso - vira «Body Double»), a câmara ‘entra em parafuso’, o erotismo transborda, tudo é declaradamente piroso, o jogo sobe de parada e o final do thriller ‘estava-se mesmo a ver’. Gosta-se ou detesta-se.

Percentagens à parte, a verdade é que mesmo assim o filme é um dos melhores de De Palma - e como ele consegue que Rachel McAdams e Noomi Rapace (está-se a tornar um caso sério...) façam faísca! Conta com um regresso em grande do compositor Pino Donnagio (ai aquela música de «Vestida para Matar»!), uma fotografia impecável de José Luis Alcaine (coincidência, fotógrafo de Almodóvar?) e toda uma direcção artística reconhecidamente franco-alemã, de se lhe tirar o chapéu. Mais, este é um caso de sucesso de uma co-produção a vários níveis, e quando assim é, nada a opor, tudo a aprovar. Numa palavra, «Paixão» foi feito com paixão.


In O Diabo (6.8.2013)

segunda-feira, agosto 05, 2013

Obituário: Bernadette Lafont (1938-2013)


O seu rosto e o seu modo lembram-me sempre os da Magnani, e por mais que puxe pelas imagens que dela tenho por via de Chabrol, Truffaut ou Rivette a verdade é que a imagem mais forte que retenho dela, por incrível que pareça, é a de uma personagem num filme pior que mau, de Boisset, chamado «Canicule» (1984), com Lee Marvin como protagonista e que vi no saudoso Éden, em matiné completamente às moscas.