terça-feira, outubro 28, 2014

Filmes em revista sumária #475


Desde já uma nota prévia: é bom termos de volta e em forma um Denzel Washington como o deste «Sem Misericórdia» (título infinitamente menor se o compararmos ao justicialista «The Equalizer», no original), um filme em que o actor de «Glory», agora com 60 anos (parece mentira, sim…), dá o corpo ao manifesto, ainda que dobrado quando foi preciso, claro; carregando às costas todas as cenas em que entra e que devem ser … todas.

Não se julgue que «Sem Misericórdia» é uma espécie de matar saudades de Anthony Fuqua (realizador) dos filmes de vigilantes dos anos 70, que ele deve ter visto e muito na sua adolescência, que não é, longe disso. Podemos estar perante uma história banal e já vista, com alguns tiques de Bronson, mas a acção explode quando tem que explodir, sem violar o método e a máxima de que deve haver tempo para tudo, mesmo para a fúria.

«Sem Misercórdia» é também um filme de detalhes, onde a contemplação assume foros de pinceladas de Edward Hopper (é uma evidência). E não se imagine que se trata de um policial sob a forma de teledisco, apesar de alguma osmose estilística inevitável e óbvia, até porque Fuqua passou por lá.

Tem os seus «clichés» (ex. o agente retirado, a máfia russa, a jovem «call girl» - e quão magnífica está Chloë Grace Moretz) mas trata-se de um belo policial (podia ser oriental … até lá está a «cerimónia» do chá) e uma boa surpresa, numa altura em que de Hollywood quase tudo é redundante. É ainda o melhor filme de Fuqua desde há muito.

Vale a pena ir ver «Sem Misericórdia», sim, e sem pressas.


In O Diabo (28.10.2014)

terça-feira, outubro 21, 2014

Filmes em revista sumária #474


«A Boa Mentira» trata das agruras por que passa um grupo de meninos feitos órfãos pela guerra civil do Sudão e, à partida, seria um daqueles filmes que teria tudo para ser pouco mais do que ignorado, não fora talvez um chamariz chamado Reese Witherspoon.

Na verdade, a enxurrada diária de imagens-choque exauridas nos nossos televisores, por força da nefasta actualidade das guerras e atrocidades que se desenrolam ali e em tantos outros locais do planeta, poderia condenar inapelavelmente o filme a esse triste desígnio, injusto.

Tal não acontece e os «culpados» da boa surpresa são, em primeiro lugar, o realizador Philippe Falardeau (premiado anteriormente, aliás) e a argumentista Margaret Nagle (idem), por terem conseguido evitar, apesar de tudo, que as quase duas horas do filme caíssem na tentação fácil de puxar a brasa à «verdade» puxa-lágrimas ou ao panfleto político-racial, antes construído um drama, que é inegável e terrível, pontilhado de lufadas de humor e alegria, sem se deixar perder no rasto da solidariedade e do …coração.

Mas também o é, e muito, o trio de protagonistas, os três ex-refugiados sudaneses que nos transmitem na primeiríssima pessoa o drama, a perda, a dor, o desespero, a desorientação e o milagre. A verdade (uma verdade?).

«A Boa Mentira» não será uma obra-prima da 7ª Arte, muito longe disso, mas é um filme honesto e tem uma fotografia espectacular. Além do mais dá gosto saber que, afinal, os esquemas de ajuda internacional aos refugiados (a começar pela norte-americana) funcionam e podem mesmo providenciar soluções miraculosas, aqui e ali. Haja esperança. Ah, e que há mentiras que são boas, pois há.


In O Diabo (21.10.2014)

terça-feira, outubro 14, 2014

Filmes em revista sumária #473


«Em Parte Incerta» é o título português, mal achado e perdido na voragem de uma tradução “imaginativa”, do último filme da fabricação, reconhecidamente de qualidade acima da média, de David Fincher, autor marcado até aqui por «Seven-7 Pecados Mortais» (1995), primeiro, e por «Clube de Combate» (1999), depois, e que se espera o seja doravante por este mesmo:

À partida tudo apontava para um simples “who done it?”, mas na verdade trata-se da história de um amor doentio e cruel, partilhado por um casal em equilíbrio em fio-de-navalha, que é posto à prova, progressivamente, por uma série de charadas e ameaças (a criança frustrada que ela nunca deixou de ser, a diferença de status e de quase tudo entre ambos, a exposição mediática a que são submetidos, etc.), esgrimido em diálogos fora-de-série (talvez graças à dupla presença de Gilliam Flynn, argumentista e autora do “best seller” que o filme adapta) entre Rosamund Pike, finalmente reconhecida (vem aí um Óscar?) e o eterno canastrão Ben Affleck.

Fincher está nas suas sete-quintas a realizar este autêntico raios-X às cenas da vida conjugal de Amy e Nick, conseguindo que o espectador entre em jogo e se impregne do doloroso novelo, cena a cena, metendo-se na pele do investigador/a de serviço (outro clássico em Fincher), escalpelizando o “com a verdade me enganas” que cada um atira à sua cara-metade.

Fincher tira o máximo partido de todos os actores mas também da excelência da fotografia do repetente Jeff Cronenweth (filho de peixe sabe nadar…) e da música dos oscarizados Trent Reznor e Atticus Ross, chegando facilmente ao resultado que se desejava: um “come back” em grande, ainda que o filme quebre um pouco no desenlace final, talvez algo cansado de tanto “twist”.

O momento maior desta anatomia de um crime, contudo, cai fora do jogo principal, embora seja também fruto de outro jogo amoroso: o desenlace visceralmente sanguinolento da cena de amor com Desi Collings, o frustrado admirador de Amy, enquanto o segundo momento é o do grande-plano do rosto desta, abrindo e fechando o filme, ao som da voz-off de Nick.


In O Diabo (14.10.2014)

terça-feira, outubro 07, 2014

Outubro é com Resnais


É sempre bom saber que vai começar um ciclo de homenagem ao realizador francês Alain Resnais (1922-2014), o cineasta do bom gosto à prova de bala (prova disso é que mantinha sua uma pequena casa-ilhota em plena baía do Morbihan…), e que o mesmo irá já decorrer durante o mês de Outubro, ainda que novamente na Cinemateca Portuguesa (já lá houve duas retrospectivas completas em 1981 e 1992) e ainda que, fruto dos nossos tempos difíceis, o ciclo abranja somente 15 da meia centena de filmes da sua autoria, entre curtas e longas-metragens.

Seja como for, quem nunca viu o cinema de Resnais e devia já ter visto, e quem viu mas esqueceu (e quem o vê era suposto nunca esquecer), terá agora a oportunidade de (re)ver algumas daquelas suas obras incontornáveis, em que a palavra e o rosto são dona e senhor da narrativa, como em «Hiroshima Meu Amor» (ai, a poesia da pele e daquele «deforma-me à tua imagem, a fim de que nenhum outro, depois de ti, compreenda a razão de tanto desejo»), «O Último Ano em Marienbad» (ai, aquele plano-sequência de homens e sombras fazendo de claro-escuro com fontes e sebes e mármores, pelos jardins dos arredores de Munique, que faz aqui da cidade termal checa) ou «Providence» (ai, aquele jogo do gato e do rato comandado pelo patriarca Gielgud); a par do irreverentíssimo díptico já mais recente, «Smoking» e «Não Smoking». Logo a abrir a homenagem, dar-se-ão a conhecer, em ante-estreia nacional, «Vocês Ainda Não Viram Nada» (2012) e «Amar, Beber e Cantar» (2014).

Resnais era um «senhor» e cada vez mais os há em menor número. Acerca da sua obra,The Guardian resumiu na perfeição a carreira do autor de «Muriel» (1963) aquando da sua morte em Março passado: «60 years of sensational cerebral film-making». Mas podia ter acrescentado que o cinema de Resnais é teatral mas fresco, imaginativo, jovem, estético, sempre com um bom gosto irrepreensível e que ele era insuperável a filmar cenas de amor (talvez as mais belas de todas sejam as de «A Guerra Acabou», filmadas em 1966), ou bien


In O Diabo (7.10.2014)