quarta-feira, abril 30, 2014

Obituário: Bob Hoskins (1942-2014)


Um actor pujante e carismático, de voz inconfundível (e como o sotaque cockney lhe assentava que nem uma luva) e talento para todos os papéis e mais alguns, mais os secundários do que os outros, infelizmente: de gangster a pirata, detective privado (sinto muito, Jessica Rabbit...) ou canalizador (e como ele dizia, e com razão, que «Super Mario Bros.» tinha sido o seu pior filme...). O seu melhor papel? Talvez o de Hilditch em «Felicia's Journey», de Egoyan, em 1999. Aos poucos, vão-se todos. Muita pena.

terça-feira, abril 29, 2014

Filmes em revista sumária #450


Soco no estômago, alegoria do Mal, escalpelização do ser humano…, tudo isto e muito mais poderia titular à vontade o filme holandês «Borgman», de Alex van Warmerdam; um filme que alguns, ironicamente, talvez sejam levados a crer, antes de o verem, tratar-se de alguma biografia filmada do legendário tenista homónimo sueco… e não daquilo que efectivamente é: uma história com requintes de malvadez.

A sequência inicial em que padre e aldeãos vão incumbidos de tarefa divina e dão caça implacável aos sem-abrigo vampirescos (para se ser vampiro não é obrigatório beber-se sangue…) que habitam tocas no meio do bosque (ambiente predilecto para este tipo de coisa), é notável e premonitória. Lembra os escandinavos de antanho, a começar pelo vampiro de Dreyer. Mas há aqui uma moral que pode ser entendida como indevida e preconceituosa: a de que quando um sem-abrigo lhe bate à porta e pede para tomar um banho, pense duas vezes, pois pode meter-lhe o diabo no corpo…

«Borgman» é de uma violência inexcedível, dando dela largas ao longo de uma série de peripécias de raiz aparentemente benévola, que vão crescendo em espiral (termo adequado, por uma vez) demoníaca inexorável, a que nem as crianças (deixai vi-las a mim, as inocentes…) escapam. Nada ali é fruto do acaso e o propósito final está lá, é só estarmos atentos.

Pelo meio do estilhaçar completo de uma família, sem razão que a razão aparentemente conheça (piscadela de olho a Michael Haneke?), van Warmerdam vai-nos presenteando com pormenores tétricos de antologia, como por exemplo: os implantes na medula óssea como forma de arregimentação dos “fiéis”, as cabeças enfiadas em baldes de cimento adquirido no supermercado da esquina, os galgos saídos do cinema surreal de Buñuel.

Enquanto isso as criaturas de Demo somam, somem e seguem, e vão andar por aí.

«Borgman» chega a nós depois de uma nomeação para a Palma de Ouro de 2013, e ainda bem que chega. É um verdadeiro sufoco, mas ele é mais uma prova de que há muito bom cinema para além do bom cinema norte-americano.


In O Diabo (29.4.2014)

terça-feira, abril 22, 2014

Filmes em revista sumária #449


É tempo de estreia de Wes Anderson. É tempo, assim, de um filme feito a régua e esquadro e de algo costumada e completamente diferente, para lá dos carretes da «normalidade» e do que vê por aí. Desta vez, porém, há muito mais desencanto no «puzzle» de personagens-caricatura (sempre tão próximas dos desenhos animados) e na «screwball comedy», em correria frenética (desde logo verbal…) por entre planos.

Mantêm-se as imagens vívidas e os «frames» dignos de postal turístico pincelado à mão, e o elenco e os seus amigos de luxo, tal como se mantém o humor negro corrosivo (ex. «gripe prussiana»), mas não há em «Grand Hotel Budapest» o habitual tom de paródia familiar, nem os filtros de imagem de um «Moonrise Kingdom», obsessivamente revivalistas. O tom é pesado e não há como fugir da fatalidade. Muito menos estamos perante o seu melhor filme, que continua a ser, sem muitas dúvidas, o seu primeiro: «The Royal Tenenbaums» .

Em «Grand Hotel Budapest» há um jogo profusamente simétrico e duplo, um «puzzle» onde o amor trágico e o poder bacoco se guerreiam, entre guerras mundiais e de alcova. No fundo, tudo gira em torno de dinheiro (que mais?) e de uma herança que motiva roubo e morte, e de um hotel de sonho, parado no tempo. Há peripécias impagáveis (por vezes roça o preciosismo de Buster Keaton) e piscadelas de olho cinéfilas, só vistas, mesmo, inteligentes e de um bom gosto refinado, a Lubitsch e Ophüls, por ex.

Ralph Fiennes e Mathieu Amalric são excelentes actores e estão soberbos. Os cenários (virtuais e reais) são um encantamento (desde logo os armazéns de Görlitz e o Zwinger), tal como a banda sonora de Alexandre Desplat é (mais uma vez) uma inspiração. As menções especiais vão direitinhas para o rosto de Mme. D, numa portentosa maquilhagem de Tilda Swinton, para a personagem de nome Zero (é um verdadeiro achado, o ser-se zero em tudo!) e, claro, para as obras de arte da pastelaria fina de Herr Mendl.

Wes Anderson comunica-nos no final do filme que se inspirou em Stefan Zweig. Fez bem.


In O Diabo (22.4.2014)

quarta-feira, abril 16, 2014

Uma convenção muito especial


terça-feira, abril 15, 2014

Vi accomodate!


Decorre até 18 de Maio, um pouco por todo o país (em Lisboa no Cinema S. Jorge, Cinemateca e Mercado de Sta. Clara - aqui talvez por ‘culpa’ da manteiga de «O Último Tango em Paris» …), a 7ª edição do 8 ½ Festa do Cinema Italiano, uma co-iniciativa de Il Sorpasso, Instituto Italiano de Cultura e Embaixada de Itália em Portugal. Um evento que é sempre bem-vindo, já que sem ele dificilmente se poderia ver cinema italiano, ainda que o sucesso assombroso (merecido) de «A Grande Beleza» possa obrigar a uma viragem nesta míngua crónica que nos circunscreve 365 dias a espectadores de filmes americanos (75% deles fitas), algum cinema francês e a uns pozinhos de cinematografias distantes.

A Festa voltou e traz com ela um pacote de secções, as mais diversas, sob o lema «La Famiglia». São longas e curtas em competição, de nomes desconhecidos e consagrados. Há nostalgia vinda de Pordenone, e de alguns Bava e dois Bertolucci. Há uma descoberta do fundo do baú - um Welles inacabado e julgado perdido até há pouco tempo, de nome «Too Much Johnson» - e há cinema juvenil do festival Giffoni. Há música, gastronomia, diversão. Motivos mais do que suficientes para aderirmos a esta mostra do que de melhor se vai rodando por terras de Fellini, Visconti, Rosselini, Pasolini, De Sica, De Santïs, Risi, Latuada, Damiani, Ferreri, Lattuada, Leone, Scola, Antonioni e «tutti quanti».

Sobre a família ser lema desta festa, cinematograficamente falando, é realmente verdade que a célula familiar é indissociável dos filmes italianos, dê lá por onde der. Seja por causa dos filmes de «gangsters, spaghetti e cannoli», seja por aquele copo-de-água épico da cena inicial de «O Padrinho», seja pelas personagens-sátira de «Amarcord» e dos patibulares de «Feios, Porcos e Maus». Seja por aquela mãe e aquele filho de «Mamma Roma», e por aqueloutros contemporâneos de «Eu Sou o Amor», por exemplo. É só escolher, num cinema que sabe sempre bem ver e ouvir num idioma lindíssimo. Rir, chorar e sonhar.

N.B. Para quando uma retrospectiva do bravíssimo Sordi?


In O Diabo (15.4.2014)

terça-feira, abril 08, 2014

Filmes em revista sumária #448


A pergunta que se faz quando termina a projecção de «Obediência» é: como foi possível tanta estupidez junta, santo Deus?

A acreditar no pré-aviso feito ao espectador de que se está perante um filme baseado em factos verídicos, é realmente confrangedor ver como foi possível àquela pessoas, aparentemente instruídas, supostamente não acéfalas, serem apanhadas desprevenidas e levadas a acreditar tão ingenuamente no que uma voz do outro lado do telefone lhes ia dizendo, e a obedecerem ao que ela lhes ia ordenando que fizessem, algumas sem pestanejarem sequer. À inverosimilhança do que iam ouvindo, aqueles adultos responderam de forma ainda mais inverosímil. Mais, será que um episódio escabroso deste gabarito só é possível na América profunda? Talvez não.

Seja como for, há neste «huis clos» de Craig Zobel (a modos que um «Saw» mas sem sangue…) matéria do foro psicossocial (mesmo psicossomático) que nem especialistas nem os próprios protagonistas conseguirão explicar cabalmente: o dia em que tudo de mau aconteceu à gerente de loja (os pickles e o bacon não são por acaso…), o noivado que foi posto à prova dos nove, a integridade e a hombridade que se revelaram onde talvez menos se esperasse que se revelassem, etc.

Um filme «indie» na verdadeira acepção da palavra, uma pérola cinematográfica, mesmo, muito para além do que ultimamente a chancela tem vindo a certificar de modo automático, como se tudo se resumisse a um «check list» de teste americano.

Um filme que está muito bem realizado (basta dizer que não há um único tempo morto num filme que é passado, basicamente, no mesmo cubículo) e interpretado (os olhares, por exemplo, estão extraordinários). E tem pormenores deliciosos, como o da sequência tipicamente 70’s, já perto do final, do inspector da polícia a ir da esquadra para o local do crime. Pessoalmente, passarei a ir com outros olhos ao «fast food» do virar da esquina.

quarta-feira, abril 02, 2014

No centenário de Alec Guiness


O melhor que se tem a fazer é comemorá-lo (re)vendo-o no pequeno écran, já que no grande só mesmo em cinematecas (às vezes, pode ser que alguém se lembre de o programar num ciclo de reprise, o que será inteiramente merecido, aliás).

No meio das mais de 50 aparições em filmes, telefilmes e séries, este grandíssimo actor da velha escola do Old Vic, tem por ‘cá’ um punhado de personagens para sempre inolvidáveis: Fagin («Oliver Twist»), as ‘n’ personagens em «Kind Hearts and Coronets», Coronel Nicholson («A Ponte do Rio Kwai»), Sidney Stratton («The Man in the White Suit»), Príncipe Faisal («Lawrence da Arábia»), Prof. Marcus («The Ladykillers»), Jim Wormold («Our Man in Havana»), John Barratt/Jacques De Gue («The Scapegoat»), >Pol («The Quiller Memorandum»), Obi-Wan Kenob («Star Wars»), Hitler («Hitler: The Last Ten Days»), e, claro, o televisivo George Smiley.

Ah, e estava completamente enganado quando afirmou de si mesmo: «Essentially I`m a small part actor who`s been lucky enough to play leading roles for most of his life..»

terça-feira, abril 01, 2014

Filmes em revista sumária #447


Mais do que estar à hora errada no local errado, o que aconteceu ao jovem Oscar Grant naquele «réveillon» de 2008 ficou como «reality show» para a posteridade, filmado que foi em tempo real por testemunhas várias de telemóvel em punho, e registado dali para a frente como prova documental de uma tramitação judicial subsequente que resultou em nada, ou quase nada, não para ele, coitado, que foi desta para pior, mas para os seus e para todos quantos pensaram que se fizesse justiça, o que se fez mas pela rama. Mas um registo também para quem o soubesse desenvolver ficcionalmente.

Este episódio de brutalidade policial sem nexo correu mundo, mas a história das 24h que antecederam a rixa que descambou no desfecho fatídico que dá título ao filme, nem por isso, pelo que foi em boa hora que Ryan Coogler nos trouxe «Fruitvale Station - A Última Paragem», recuperando o trágico episódio e o que o precedeu. E se nunca viremos a saber se Oscar Grant quis ou não quis de facto corrigir o rumo da sua vida naquele dia, recusando viver em fio-de-navalha, ou se foi «apenas» vítima das circunstâncias, uma coisa é certa:

Este filme tem um qualquer condimento que o coloca muito para lá do filme deste género, tantas vezes panfletário, lugar-comum, em que a regra é ver quem debita mais «rap» ou profere mais palavrões. Até porque o facto de ser uma histórica comprovadamente verídica não pode explicar tudo, nem o explicam a realização virtuosa de Ryan Coogler, que não se deixa cair em tempos mortos nem resvalar para a lágrima feita, nem sequer a angústia ou o imenso remorso da personagem da mãe, incarnada por Octavia Spencer, essa extraordinária actriz.

Não, talvez seja tudo muito mais simples, talvez seja simplesmente porque o que aconteceu ao malogrado protagonista podia ter acontecido a qualquer um. É essa a tragédia humana.


In O Diabo (1.4.2014)