Smile
É preciso recuarmos mais de 90 anos para encontrarmos outro filme assim, que nos surre violentamente com um sorriso estampado no rosto da personagem principal:
Em «The Man Who Laughs» (1928), de Paul Leni e produzido pelo tycoon Carl Lammle, o imortal Conrad Veidt dá rosto e corpo a alguém que, em criança e por culpa do pai, foi vítima de uma terrível condenação por incisão propositada de cirurgião sem escrúpulos: rir para sempre.
Para o sucesso desse inolvidável clássico da era do Mudo tudo contribuiu o gigante Veidt, mas também o talento de Paul Leni e, claro, a prosa primeira de Victor Hugo, que sempre conjugou, como poucos, o romance com o drama, a beleza e o monstro, interior e exterior.
É essa a herança de «Joker» que Todd Phillips e sobretudo Joaquin Phoenix, não só aproveitam como multiplicam e transformam num filme tão poderoso quanto indigesto, e que é já um dos marcos cinematográficos da década e, por conseguinte, do Sonoro.
Aqui, do que se trata não é de explorar uma pseudo-história de vida do arqui-vilão do Batman das histórias aos quadradinhos dos super-heróis da DC Comics, nunca descrita até hoje, e por mais que pareça sê-lo, até porque, calcule-se, a personagem de Veidt inspirou, ela própria, os autores de … Batman, e aí não há nem adopções nem manicómios para ninguém.
Ou seja, o argumento do filme é uma pura invenção do realizador, portanto, nunca foi escrita nem descrita em nenhuma banda desenhada.
Desengane-se, portanto, quem for para «Joker» munido de pipocas e na expectativa de ver um filme da Marvel, perdão, da DC Comics. Tal não podia acontecer e não acontece.
E que ninguém se ponha a querer comparar o incomparável, pois a personagem que Joaquin Phoenix sofre até quase sufocar, nada pode ter que ver com os homónimos mais recentes do grande écran, seja na variante apalhaçada que Jack Nicholson interpretou para Tim Burton, seja na versão mais demoníaca e irascível que o malogrado Heath Ledger tão bem soube compor para Christopher Nolan.
Aqui, como em 1928, o que conta é o expressionismo do imaginário, uma realidade dura e insuportável, de que a doença mental, no caso de Arthur Fleck, é apenas a espoleta.
Todd Philips soube evitar a tentação de recriar (inventar) cenários góticos à série televisiva, mas, quem sabe, terá abusado da “mãozinha” de Scorsese, que esteve inicialmente ligado à pré-produção do filme, facto que é visível a olho nu no piscar de olho a «The King of Comedy» e a «Taxi Driver», por exemplo.
Um imaginário adaptável aos tempos que correm, aos choques da sociedade contemporânea, aos eternamente injustiçados e tantas vezes espezinhados pelo poder do dinheiro, do oportunismo dos media, etc., daí resultando necessariamente também num filme oportunista porque demagógico, sinal dos tempos, apesar de ter também muito de conto de fadas … mefistofélico.
Seja como for, o que interessa aqui é a personagem-filme, é Fleck e a sua compulsão desenfreada pelo riso, a sua auto-flagelação incontinente, capaz de de qualquer laringe ou pulmão. É o sarcasmo que mata, literalmente. A tragicomédia de um homem só e delirante, em que todos pressentimos estar iminente uma explosão, o que acontece no “directo” (a beber claramente em «Network»): o êxtase.
Uma explosão de violência sem limites, mas também de côr, mas esta só no seu rosto e na indumentária de palhaço, tudo o mais é filtro. Uma espécie de Tai Chi Chuan de efeito perverso, ao som de Sinatra e Jimmy Durante, intermitente à poderosíssima música de fundo da islandesa Hildur Guðnadóttir, que já nos havia presenteado com acordes semelhantes em «Sicário».
Joaquin Phoenix está portentoso e ninguém mais o esquecerá enquanto Joker, terá mesmo ganho com esta interpretação o acesso ao Olimpo.
Todd Phillips, esse precisará de mais uma prova dos nove, ou talvez não.
Smile,
Though your heart is achin'
Smile,...
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