terça-feira, abril 29, 2014

Filmes em revista sumária #450


Soco no estômago, alegoria do Mal, escalpelização do ser humano…, tudo isto e muito mais poderia titular à vontade o filme holandês «Borgman», de Alex van Warmerdam; um filme que alguns, ironicamente, talvez sejam levados a crer, antes de o verem, tratar-se de alguma biografia filmada do legendário tenista homónimo sueco… e não daquilo que efectivamente é: uma história com requintes de malvadez.

A sequência inicial em que padre e aldeãos vão incumbidos de tarefa divina e dão caça implacável aos sem-abrigo vampirescos (para se ser vampiro não é obrigatório beber-se sangue…) que habitam tocas no meio do bosque (ambiente predilecto para este tipo de coisa), é notável e premonitória. Lembra os escandinavos de antanho, a começar pelo vampiro de Dreyer. Mas há aqui uma moral que pode ser entendida como indevida e preconceituosa: a de que quando um sem-abrigo lhe bate à porta e pede para tomar um banho, pense duas vezes, pois pode meter-lhe o diabo no corpo…

«Borgman» é de uma violência inexcedível, dando dela largas ao longo de uma série de peripécias de raiz aparentemente benévola, que vão crescendo em espiral (termo adequado, por uma vez) demoníaca inexorável, a que nem as crianças (deixai vi-las a mim, as inocentes…) escapam. Nada ali é fruto do acaso e o propósito final está lá, é só estarmos atentos.

Pelo meio do estilhaçar completo de uma família, sem razão que a razão aparentemente conheça (piscadela de olho a Michael Haneke?), van Warmerdam vai-nos presenteando com pormenores tétricos de antologia, como por exemplo: os implantes na medula óssea como forma de arregimentação dos “fiéis”, as cabeças enfiadas em baldes de cimento adquirido no supermercado da esquina, os galgos saídos do cinema surreal de Buñuel.

Enquanto isso as criaturas de Demo somam, somem e seguem, e vão andar por aí.

«Borgman» chega a nós depois de uma nomeação para a Palma de Ouro de 2013, e ainda bem que chega. É um verdadeiro sufoco, mas ele é mais uma prova de que há muito bom cinema para além do bom cinema norte-americano.


In O Diabo (29.4.2014)

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