terça-feira, janeiro 06, 2015

Filmes em revista sumária #484

«Mr. Turner» marca o regresso de Mike Leigh às longas-metragens, após quatro anos de interregno, e ao século XIX da rainha Vitória, onde já não ia desde o alucinante «Topsy-Turvy» (1999). Marca ainda o reencontro do cineasta do realismo britânica com o também fabuloso, e tão sui generis, actor Timothy Spall. E, tal como fez com a dupla Gilbert & Sullivan, Leigh volta a conseguir um filme de época meticuloso, de detalhes, assente numa inabalável consistência narrativa, em diálogos perfeitos e numa encenação primorosa. Ao homem por detrás do mais romântico e “impressionista” dos paisagistas ingleses. Ao ser humano nos antípodas da sofisticação sensível que as cores, a luz e a sombra inconfundíveis e filtradas dos seus quadros nos transmitem.

O Joseph Mallord William Turner que Leigh filma e Spall compõe na perfeição, é uma personagem truculenta, egoísta, excêntrica, animalesca e lasciva, em certa medida um ogre, que rumina palavras mudas e emite sons guturais e tempestuosos, que não hesita em ignorar e maltratar as próprias filhas. Quiçá porque o filme só retrate os anos finais do pintor de génio, ou porque, simplesmente, foi esta na realidade a outra face do artista, alguém que, por sinal, fez questão de legar parte do seu pecúlio à academia das artes e as suas obras ao Estado para serem apreciadas por todos e num só local, o que não aconteceu, aliás.

«Mr. Turner» é um belo filme, em que cada plano é uma tela, aguarela ou óleo, pouco importa, que no final fará o espectador ir a correr ler tudo sobre a vida e obra do pintor. Um filme de cenas memoráveis, como aquela em que, transbordando romantismo, Turner e os amigos foliões presenciam o rebocador puxando o velho navio de Nelson, metáfora de um mundo que já foi e um outro que está para vir (está muito bem conseguida a faceta pró-industrial de Turner); ou aqueloutras passadas na galeria de Soane (hoje casa-museu), em que Turner enxovalha Constable e torce o nariz aos pré-rafaelitas.

«Mr. Turner» é, enfim, mais que um filme sobre uma pessoa, é um filme sobre os elementos e sobre paisagens, barcos e mastros, e, tal como a sua pintura, maioritariamente sublime.


In O Diabo (6.1.2015)

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