«O Conto dos Contos» trata de três ditos-cujos sobre três reis malvados (cada qual à sua maneira) que se cruzam no final da narrativa, unidos por uma moral comum: tiveram os três o que mereciam.
São contos (i)morais, portanto, cruéis, perversos, macabros, que calam fundo e fazem pensar (impossível…pipocas), muito distantes do rótulo de “filme para todos” com que alguma publicidade enganosa os tem promovido e alguma da escassa (talvez por isso mesmo…) plateia os tem recebido, ingloriamente, porque se tratam de episódios fascinantes que compõem um filme magnífico e surpreendente de Matteo Garrone.
Claro que os reinos de Selva-Escura, Alto-Monte e Roca-Forte tomam para si, e cavalgam sem risco aparente, muitas das personagens e das situações narradas pelos Grimm, por exemplo (ainda que oficialmente se apresentem como inspirados no universo contista do napolitano Giambattista Basile, do século XVI) e resultam muito bem naqueles extraordinários cenários reais onde Garrone os reinventa para nosso deleite (um tudo ou nada manipulados digitalmente…), sobretudo por terras da Apúlia e de Sicília – aliás, a atmosfera “negra” e o não menos negrume do fabuloso guarda-roupa de «O Conto dos Contos» têm um cunho muito próprio daqueles tempos reais dos Bourbons de antanho. E a música sublime do sempre inspirado Alexandre Desplat também ajuda.
Mas o espanto é mesmo aquela orgia mostrenga, que atravessa o filme de ponta a ponta e que Disney tão bem criava (como génio que era, nas entrelinhas de cada maravilhoso desenho animado) que reside o seu mais valioso encantamento: na “corça encantada”, na “pulga” e na “velha esfolada”, naquelas três fantasiosas alegorias que retratam o melhor e o pior do Homem.
Um filme criativo e encantatório, que lembra o melhor de Terry Gilliam, com maior sentido estético (escola italiana…) e com mais saturação de cor mas, paradoxalmente, maior souplesse, de tal forma que algumas cenas e personagens já não saem mais da nossa memória: o dedo no buraquinho da porta da casa da velha com canto de sereia, Salma devorando brutalmente o coração do monstro marinho, a correria de mãe e filho no labirinto, a asfixia da pulga, a cosedura dos seios, a escalada dos noivos incompatíveis rochedos acima e, claro, o colossal homem das cavernas, verdadeiro tratado de monstruosidade.
«O Conto dos Contos» é o filme-surpresa de Matteo Garrone, de quem se espera sempre uma boa camorrada, mas de quem se ignorava tamanho coração “negro”, apesar de já na sua primeira obra, «Primeiro Amor», ter dado um ar da sua graça em termos de deformações de corpo e mente humanos. Venham mais, por favor!