terça-feira, abril 26, 2016

Filmes em revista sumária #539


«Truman», o corpolento e simpático bulmastife que na realidade se chamava Troilo e trabalhava com autistas, e que morreu dois meses depois de virar estrela cinematográfica, nada tem que ver com quaisquer presidentes, até se prestando a funcionar pachorrentamente como verdadeiro McGuffin do filme homónimo do catalão Cesc Gay.

Um filme descomplexado sobre a dor na despedida, sobre a amizade, tout court, que toca fundo ao expectador e à necessidade de afecto que todos nós sentimos e que, não poucas vezes, nos está arredio e distante, sobretudo nos piores e derradeiros momentos que é quando dele mais precisamos.

Cesc Gay recorre não ao potencial tearjerk desta ou daquela carga mais dramática, que facilmente o accionaria, mas a diálogos e a situações de uma imensa riqueza humana, bafejados não poucas vezes por um humor inteligente e, claro está, pelo talento de Ricardo Darín, um actor verdadeiramente soberbo, na expressão, nos gestos, no olhar e naquele belo castelhano com entoação argentina.

Mesmo que algumas coisas pareçam desconexas – a ida a Amesterdão, a cena de sexo entre os amigos, etc. -, valem muito mais todas as outras que são quase todas, desde logo aquela cena no restaurante, em que há um casal de amigos que faz de conta que não vê Julian, só porque, segundo o próprio, “não sabe o que dizer”, ou aqueloutras nos consultórios do veterinário de Truman e do médico de Julian, ou ainda a ida ao tanatório.

É um imenso e sentido abraço, este «Truman».

segunda-feira, abril 18, 2016

Filmes em revista sumária #538


Se, por um lado, é bom de ver que o sexagenário Kevin Costner se mantém em forma, pelo menos no que toca a socar à bruta quem merece, ou a levar jovens viúvas a perder-se de amores por ele; por outro, infelizmente, chega a ser patético o chorrilho de filmes disparatados e sem qualquer interesse em que a outrora jovem estrela de «Silverado» tem vindo a entrar “ultimamente”.

Vem isto a propósito do indescritível «Criminal», uma fitosa realizada pelo israelita Ariel Vromen (responsável pelo interessantíssimo «The Iceman», com o impagável Michael Shannon) e produzida pela Millennium, do também israelita Avi Lerner – na calha a versão II da produtora Cannon, dos primos Golan & Globus, de má memória e piores filmes?

Uma fita que nunca mais acaba e que quando acaba parece que nunca existiu. Kevin Costner nunca esteve tão primário quanto em «Criminal», e teria valido muito mais ao filme que a personagem de Ryan Reynolds se tivesse mantido mais tempo em tela do que esteve. O vilão é de fazer rir o fã mais fervoroso das historietas de vilões que ameaçam o mundo com explosões nucleares, e só se entende que Gary Oldman e Tommy Lee Jones estivessem precisados de dólares quando aceitaram entrar nesta paródia de trazer-por-casa a Jason Bourne, em que as memórias de um agente da CIA são transferidas para um lóbulo adormecido do cérebro patibular de certo criminoso. A evitar sem pipocas.

terça-feira, abril 05, 2016

Obituário: Gato Barbieri (1932-2016)


Inolvidável, a música que compôs para o sempre abençoado tango de Bertolucci, Brando e Maria Schneider, tal como inolvidável foi a parceria do seu saxofone com o de Gerry Mulligan. Gostava de o ter visto em 75. A última vez que veio cá foi ao Tivoli, em 2001, saiu sem aviso prévio e todos a pedir mais.

segunda-feira, abril 04, 2016

Filmes em revista sumária #537


«O Conto dos Contos» trata de três ditos-cujos sobre três reis malvados (cada qual à sua maneira) que se cruzam no final da narrativa, unidos por uma moral comum: tiveram os três o que mereciam.

São contos (i)morais, portanto, cruéis, perversos, macabros, que calam fundo e fazem pensar (impossível…pipocas), muito distantes do rótulo de “filme para todos” com que alguma publicidade enganosa os tem promovido e alguma da escassa (talvez por isso mesmo…) plateia os tem recebido, ingloriamente, porque se tratam de episódios fascinantes que compõem um filme magnífico e surpreendente de Matteo Garrone.

Claro que os reinos de Selva-Escura, Alto-Monte e Roca-Forte tomam para si, e cavalgam sem risco aparente, muitas das personagens e das situações narradas pelos Grimm, por exemplo (ainda que oficialmente se apresentem como inspirados no universo contista do napolitano Giambattista Basile, do século XVI) e resultam muito bem naqueles extraordinários cenários reais onde Garrone os reinventa para nosso deleite (um tudo ou nada manipulados digitalmente…), sobretudo por terras da Apúlia e de Sicília – aliás, a atmosfera “negra” e o não menos negrume do fabuloso guarda-roupa de «O Conto dos Contos» têm um cunho muito próprio daqueles tempos reais dos Bourbons de antanho. E a música sublime do sempre inspirado Alexandre Desplat também ajuda.

Mas o espanto é mesmo aquela orgia mostrenga, que atravessa o filme de ponta a ponta e que Disney tão bem criava (como génio que era, nas entrelinhas de cada maravilhoso desenho animado) que reside o seu mais valioso encantamento: na “corça encantada”, na “pulga” e na “velha esfolada”, naquelas três fantasiosas alegorias que retratam o melhor e o pior do Homem.

Um filme criativo e encantatório, que lembra o melhor de Terry Gilliam, com maior sentido estético (escola italiana…) e com mais saturação de cor mas, paradoxalmente, maior souplesse, de tal forma que algumas cenas e personagens já não saem mais da nossa memória: o dedo no buraquinho da porta da casa da velha com canto de sereia, Salma devorando brutalmente o coração do monstro marinho, a correria de mãe e filho no labirinto, a asfixia da pulga, a cosedura dos seios, a escalada dos noivos incompatíveis rochedos acima e, claro, o colossal homem das cavernas, verdadeiro tratado de monstruosidade.

«O Conto dos Contos» é o filme-surpresa de Matteo Garrone, de quem se espera sempre uma boa camorrada, mas de quem se ignorava tamanho coração “negro”, apesar de já na sua primeira obra, «Primeiro Amor», ter dado um ar da sua graça em termos de deformações de corpo e mente humanos. Venham mais, por favor!