terça-feira, janeiro 27, 2015

Filmes em revista sumária #487


«Miss Julie», realizado pela norueguesa e bergmaniana Liv Ullmann (e que bem que isso aqui se nota) e tal como a peça que lhe serve de musa, condensa todo o imaginário, ou quase todo, do genial autor sueco (universal) que foi August Strindberg, cuja pena tremendamente dramática, cruel, tantas vezes misógina e masoquista (como desta vez), roça, não poucas vezes, a loucura e um pessimismo degenerativo como que diabólico.

A diferença de classe social, o fanatismo religioso, etc., personagens marionetas de uma espécie de pantomina consciente permanente, à qual a Natureza e Deus servem de contraponto; eis a mira da sua escrita anti-convencional e arrojada, politicamente incorrecta, como agora se diz.

Nessa perspectiva, o filme cumpre integralmente, através de uma encenação meticulosa e perfeita, que privilegia a palavra e a expressão, não fossem a palavra e a emoção elementos distintivos da escrita superlativa do sueco: «Miss Julie» é, portanto, um filme da palavra e de actores.

Só que a Irlanda não é a Escandinávia (mau grado a austeridade da mansão senhorial onde as cenas se passam, e da beleza fria, mais outonal do que estival, dos cenários naturais), nem Colin Farrell mais o seu sotaque irritante chegam sequer aos calcanhares (pelo menos desta feita) de Jessica Chastain e Samantha Morton, ambas a merecerem aqui, claramente, nomeações aos prémios da Academia (a primeira, pelo seu melhor e mais difícil papel até hoje, e a segunda tirada a papel químico de um filme de Carl Dreyer – haverá melhor elogio?).

É um filme manco, que fica aquém do que podia ser: a versão definitiva, em cinema, de «Miss Julie». Mesmo assim há momentos sublimes, como a cena da sedução, logo do começo, a da consumação no quarto do criado, e da erupção violenta, na cozinha, com uma Jessica Chastain magnificamente desamparada entre a culpa e o desespero, o arrependimento e a perdição. Como magnífico é aquele portão, símbolo-fronteira entre o público e o privado, o íntimo e o ostensivo, a menina e a mulher.


In O Diabo (27.1.2015)

terça-feira, janeiro 20, 2015

Filmes em revista sumária #486


O tempo passou e nesta altura é extremamente difícil apurar, de memória, se a Palma de Ouro de Cannes de 2014 foi ou não justamente atribuída a «Sono de Inverno», tendo em conta a concorrência directa, ou se o prémio foi só para homenagear os 100 do cinema turco (e, por arrastamento, o seu teatro, se pensarmos que o protagonista tem entre mãos a escrita da História do Teatro Turco…). Pouco importa.

O que importa é que «Sono de Inverno» é um filme belíssimo sobre o amor, fogo que arde sem se ver, como diria o poeta, lentamente, no microcosmos de um actor reformado, junção de dois universos, o real e o ficcional, entre nevoeiros e neves, mas também entre duas Turquias, a ocidental e a oriental, respectivas morais, maneiras de ser e de sentir. Um filme que fala da velhice e a loucura (como lembra o protagonista no final) - não é por acaso que nos créditos finais se referem os nomes de Chekov e Dostoievksy, mas também de Shakespeare. Inclusive, não ficaria mal uma referência à poética japonesa.

Nova grande obra de Nuri Bilge Ceylan (a mais recente tinha sido «Era Uma Vez na Anatólia», em 2011) em honra de um grande país chamado Turquia, e mais uma vez com a câmara assombrosa de Görkhan Tiryaki. Desta vez com acompanhamento ao piano da 20ª sonata de Schubert, e logo por Alfred Brendel.

Os actores são brilhantes e há cenas intimistas memoráveis como a da discussão entre marido e mulher, no quarto desta, ou a da ida daquela a casa dos inquilinos para ver o menino doente. Ou aqueloutra na casa do amigo do actor, com o professor, os três bastante tocados. Mas a haver uma cena para a posteridade, essa só pode ser a da captura do cavalo selvagem, pelo simbolismo e pela premonição. Pergunta-se: será que «Sono de Inverno» seria a maravilha filosófica que é se não o tivesse sido naquele cenário lunar da Capadócia, naquelas estepes que Gogol não desdenharia? Talvez não. Mas as coisas são como são. E estas mais 3h e 17’ passam num ápice - haverá melhor indicador para um filme?


In O Diabo (20.1.2015)

terça-feira, janeiro 13, 2015

Filmes em revista sumária #485


«Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)» é um filme belo, carregado de humor negro e de onirismo consciente, realizado pelo mexicano Alejandro Iñárritu num falso único «take», no qual a câmara de Emmanuel Lubezki voa por entre a mente e a Broadway, numa jornada prodigiosa de planos-sequência que faz lembrar Fellini e Ophuls. É também uma história curta e incisiva, impregnada de tensão e poesia, como Raymond Carver escreveria. Uma história sobre a meia-idade, sobre o egoísmo, frustrações e família, mas também sobre o palco da vida, de Pessoa. E sobre o crer que é poder e como o segredo da libertação de cada um reside na mente de cada qual.

Não será apenas de agora o drama dos actores que não se conseguem libertar do passado de super-herói, muito menos é de hoje a atracção do cinema pela clausura da mente, bastará recordarmos dois dos mais famosos homens-pássaros do grande «écran», que passam agora ter por companheiro deste século este outro de Iñárritu: o preso mais famoso da outrora prisão de Alcatraz e o louco-traumatizado de «Birdy» (1984).

E que dizer dos diálogos a-s-s-o-m-b-r-o-s-o-s de «Birdman»?Ou daquelas personagens (todas sem excepção) e das respectivas interpretações, com a do recuperado Keaton (o nosso querido Beetlejuice, do começo de Tim Burton) à cabeça, arriscando-se a um Óscar? E daquela bateria terrivelmente poderosa, intermitente por entre trechos clássicos (Ravel, Mahler e por aí fora), pré-anunciando uma explosão iminente? Ou da óbvia homenagem às asas protectoras do já clássico anjo de Ganz & Wenders?

Que isto é Cinema e que o devemos aplaudir de pé.


In O Diabo (13.1.2015)

sexta-feira, janeiro 09, 2015

Obituário: Rod Taylor (1930-2015)


Mas ficam connosco as imagens deste australiano que um dia levantou vôo com os pássaros de Hitch e Du Maurier. Contudo, a melhor performance de Rod Taylor seria aquela de «Young Cassidy» (1965), naquela que foi, aliás, a sua década prodigiosa. Terá dito de si próprio: «I was one of the first of the uglies. Rock Hudson and Tab Hunter... were very pretty fellows, and that was the trend. I was one of the first of the uglies to get lucky».

terça-feira, janeiro 06, 2015

Filmes em revista sumária #484

«Mr. Turner» marca o regresso de Mike Leigh às longas-metragens, após quatro anos de interregno, e ao século XIX da rainha Vitória, onde já não ia desde o alucinante «Topsy-Turvy» (1999). Marca ainda o reencontro do cineasta do realismo britânica com o também fabuloso, e tão sui generis, actor Timothy Spall. E, tal como fez com a dupla Gilbert & Sullivan, Leigh volta a conseguir um filme de época meticuloso, de detalhes, assente numa inabalável consistência narrativa, em diálogos perfeitos e numa encenação primorosa. Ao homem por detrás do mais romântico e “impressionista” dos paisagistas ingleses. Ao ser humano nos antípodas da sofisticação sensível que as cores, a luz e a sombra inconfundíveis e filtradas dos seus quadros nos transmitem.

O Joseph Mallord William Turner que Leigh filma e Spall compõe na perfeição, é uma personagem truculenta, egoísta, excêntrica, animalesca e lasciva, em certa medida um ogre, que rumina palavras mudas e emite sons guturais e tempestuosos, que não hesita em ignorar e maltratar as próprias filhas. Quiçá porque o filme só retrate os anos finais do pintor de génio, ou porque, simplesmente, foi esta na realidade a outra face do artista, alguém que, por sinal, fez questão de legar parte do seu pecúlio à academia das artes e as suas obras ao Estado para serem apreciadas por todos e num só local, o que não aconteceu, aliás.

«Mr. Turner» é um belo filme, em que cada plano é uma tela, aguarela ou óleo, pouco importa, que no final fará o espectador ir a correr ler tudo sobre a vida e obra do pintor. Um filme de cenas memoráveis, como aquela em que, transbordando romantismo, Turner e os amigos foliões presenciam o rebocador puxando o velho navio de Nelson, metáfora de um mundo que já foi e um outro que está para vir (está muito bem conseguida a faceta pró-industrial de Turner); ou aqueloutras passadas na galeria de Soane (hoje casa-museu), em que Turner enxovalha Constable e torce o nariz aos pré-rafaelitas.

«Mr. Turner» é, enfim, mais que um filme sobre uma pessoa, é um filme sobre os elementos e sobre paisagens, barcos e mastros, e, tal como a sua pintura, maioritariamente sublime.


In O Diabo (6.1.2015)