terça-feira, fevereiro 23, 2016

Filmes em revista sumária #534


«Carol» é um belíssimo filme, sobre uma história de amor, provocadora q.b., na linha, mais coisa menos coisa, do que tem sido o fio-condutor da obra de Todd Haynes: uma obra curta mas marcante e de que «Longe do Paraíso» (2002) continua a ser o ponto mais alto, ainda que tenha sido rotulado na altura como uma mera homenagem-decalque ao cinema de Douglas Sirk.

Desta vez há um toque de intriga psicológica, quase policial, à Patricia Highsmith (na verdade, o livro em que o filme se baseia, «The Price of Salt», baseia-se na vida real da própria autora, que chegou a ser empregada de comércio e se enamorou por várias mulheres casadas), mas mantém-se naquele encantamento visual de sempre, aqui fruto do perfeccionismo com que Haynes volta a reconstituir mais uma vez os anos 50, numa América sempre hipócrita.

Mas continua a ser um cinema de cariz psicossexual, marcado indelevelmente pela homossexualidade, e um cinema de detalhes. «Carol», aliás, é acima de tudo um filme de detalhes. Detalhes que começam logo aquando do seu primeiro frame, naquele momento em que a câmara imóvel fixa uma grelha de ferro de um qualquer respirador de passeio, para logo começar a subir e dar-nos uma perspectiva da rua e do frenesim dos seus transeuntes, colando-nos na peugada de um homem de gabardine e chapéu, que entra num bar de hotel para depois fixar o olhar nas costas de uma mulher sentada na sala de jantar, tête-à-tête com outra. A câmara fixa-se nos olhares cúmplices entre Carol e Therese: detalhe que nos transmite imediatamente o mote do filme. A partir daí, a história e a encenação só podiam desenrolar-se e acabar como acabaram.

E se as imagens são superlativas e os detalhes não se esquecem, não menos superlativas e inesquecíveis estão Cate Blanchett (e alguma vez o não está?), no papel da adulta e sofisticada Carol, e Rooney Mara (uma actriz de quem apenas nos lembrávamos no papel da heroína da versão americana de «Os Homens que Odeiam as Mulheres» - premonitório?), no de Therese, a imberbe e simples empregada de uma secção de brinquedos de um grande armazém.

É pouco, um filme bonito de ver e ouvir? Talvez. Outras vezes será mais do que suficiente, é o caso.


In O Diabo (23.2.2016)

terça-feira, fevereiro 16, 2016

Filmes em revista sumária #533


Pré-aviso: quem vir o trailer de «Quarto», pensa que viu o filme mas não viu.

Feito o aviso, o «Quarto» que dá título ao poderoso filme do irlandês Lenny Abrahamson, pouco ou nada tem que ver com a barraca esquálida mas apetrechada dos serviços mínimos, em que estão enclausurados mãe e filho, após o rapto daquela, e onde apenas recebem a luz filtrada pela clarabóia e a visita do raptor para entrega de víveres e cobrança de outros “serviços”.

O «Quarto» de que aqui se fala, e que surge em sequência do êxito literário da escritora Emma Donoghue, é o mundo de Jack, o menino de cinco anos: o seu universo inteiro, porque nunca conheceu outro nem mais ninguém de carne e osso que não aquele e a sua mãe, mais o mosquito que o picou e o rato do campo que nele entrou por engano à procura de migalhas. Um mundo que é a soma da totalidade dos seres e dos corpos da sua existência em ausência de liberdade - nesse capítulo, «Quarto» seria a experiência laboratorial ideal de qualquer cientista demente, aprendiz de Pavlov.

Contudo, o melhor do filme não é a parte do encarceramento, longe disso, nem sequer o momento da previsível fuga (cuja sequência é digna do melhor thriller, aliás), mas sim a descoberta por Jack do mundo real, de um mundo novo para lá da ilusão do pequeno écran dos cartoons e das sabatinas da mãe, e é essa descoberta, por etapas e em crescente deslumbramento, que faz deste filme uma emoção.

«Quarto» é um filme optimista, que dá crédito a milagres e aos homens, ainda que a força desta família monoparental resida na mãe, primeiro, e na avó, depois. É por isso um filme actual. Duplamente, se nos lembrarmos das atrocidades do género que nos vão chegando pelos jornais e pela TV em relatos inacreditáveis, de um mundo real que custa a engolir.

Por fim, é ainda um filme de duas grandes actrizes, uma novata e uma veterana chamadas Brie Larson e Joan Allen, respectivamente, a quem o Óscar não podia assentar melhor, mas também de um pequeno-grande actor chamado Jacob Tremblay, um prodígio a quem se deseja boa fortuna.

Haja esperança neste mundo!


In O Diabo (16.2.2016)

quarta-feira, fevereiro 10, 2016

Filmes em revista sumária #532


O prenúncio do que aí vem é-nos dado logo de início por aquele cruzeiro de antanho (a lembrar Drácula), de mau augúrio, a ocupar a quase totalidade do branco de neve do horizonte, e uma diligência em apuros cruzando-o, rolando em esforço titânico de seis intrépidos cavalos e mais um destemido cocheiro, de nome O.B., em direcção a uma tal Red Rock.

E se a acção de «Os Oito Odiados», o 8º filme de Quentin Tarantino, decorre algures nos tempos de rescaldo da Guerra da Secessão, a acção do que aí vem passa-se quase na totalidade dentro de uma estação de apoio, na “retrosaria” da Minnie, que rapidamente pede meças à «Estalagem Sangrenta» de Autant-Lara e Fernandel … e como Tarantino sabe misturar como ninguém sangue com gargalhadas, desde logo pelos detalhes gore com que gosta de salpicar os seus filmes mais explosivos (os vómitos de sangue em agulheta, o braço cortado de Ruth dependurado da corrente a que Daisy Domergue está algemada, etc.).

«Os Oito Odiados» está alguns furos abaixo de «Django Libertado» (2012), talvez porque seja mais que muito o auto-plágio de Tarantino desta vez (e há ali tanto de «Cães Danados), e já cansem as referências às grandes referências do policial e do western (spaghetti, acima de tudo), seja porque o filme empastele a certa altura e de nada lhe valham o brilhantismo dos diálogos ou a fotografia assombrosa das cenas épicas do lastro, no vai e vem da estação ao estábulo, só recuperando já na recta final, quando as balas fazem justiça e a violência monta o circo.

Não será por falta de actores, que Samuel C. Jackson, Kurt Russell e Jennifer Jason-Leigh estão soberbamente maus que se fartam, e há um certo Walton Goggins com um papelão e pêras, enquanto Xerife Mannix. Nem por falta de inspiração divina de Morricone & Leone. Será porque são 8 personagens à procura de um autor?

Mesmo assim, «Os Oito Odiados» é Tarantino, e Tarantino é Tarantino: excessivo, obsessivo, provocador, folgazão, cinéfilo, virtuoso, único mas não … um autor. E ou se ama ou se odeia, multiplicado por oito.


In O Diabo (9.2.2016)

quarta-feira, fevereiro 03, 2016

Filmes em revista sumária #531


Hugh Glass é a personagem feroz central de «O Renascido», um mamífero primata, carnívoro, bípede, com capacidade de fala, que tem índole ou natureza de fera, é impetuoso e violento (in dicionário), e que uma vez separado para sempre do seu ente mais querido regressa dos mortos para a vida apenas com um fito: a vingança.

Leonardo di Caprio incarna bestialmente (Óscar imperdível, por certo) esse ser implacável e sanguinário que é Glass revertido, puxando pelo pior que há nele para resistir à mãe Natureza e às feras que o povoam, desde logo e acima de tudo à malvadez, ganância, traição e cobardia de um outro homem, este outro também representado de forma portentosa por Tom Hardy, esse excelente actor inglês, à conquista do Oeste.

É verdade que a resistência de um ser humano à adversidade dos Elementos, perdido na imensidão da paisagem da América do Norte profunda, já tinha sido posta à prova em filmes superlativos como «Jeremiah Johnson» (1972), de Pollack, ou «Man in the Wilderness» (1971), do sempre olvidado Richard C. Sarafian, sendo que neste último, inclusivamente, a história tem bastantes semelhanças com a de «O Renascido», mas convenhamos: o filme de Alejandro González Iñárritu é mesmo de outra galáxia, uma autêntica expedição de instintos e asfixiada de verde, à Herzog, fustigada por vento e neve, aquela por que passa o espectador:

Entranhamo-nos na lama e na água gelada do Missouri (no argumento), sobrevivemos a uma mãe-ursa furiosa (e que sequência notável essa é!) e às setas dos índios, em batalhas impróprias para “todas as idades”. E à carnificina a mais violenta, em que vale tudo, mesmo arrancar olhos. Deixamo-nos enterrar vivos quando Glass o é, temos chagas que não cicatrizam, comemos as entranhas de um bisonte acabado de morrer, arrancamos um pedaço de peixe pescado com as mãos e metemo-nos na carcaça de um cavalo para resistirmos à intempérie. Fotografia soberba, a de Emmanuel Lubezki, evidentemente, tal como soberbas são a montagem, a caracterização e a banda sonora de «O Renascido».

É um filme extravagante? Há excessivos excessos, desde logo uma incomensurável panorâmica e uma permanente cultura do músculo? E depois? Isto é cinema no seu estado mais puro.


In Diabo (2.2.2016)