quinta-feira, julho 31, 2014

Filmes em revista sumária #463


Pois é, os dotes argumentistas de Paul Haggis parecem não ser já o que foram em «Colisão» (2004) ou em «No Vale de Elah» (2007), por exemplo, filmes em que o canadiano deu uma lufada de ar fresco ao panorama cinematográfico produzido além norte-atlântico, graças, sobretudo, a argumentos poderosos e originalíssimos, consubstanciados em filmes-matriz, mosaicos onde várias histórias aparentemente desconexas entre si se cruzavam, algures a meio da intriga, desenlaçando-se num final portentoso, não sem que pelo meio não houvesse alguma forma de «twist», mas sem nunca ludibriar ou manietar o espectador - muito na linha, aliás, do que Paul-Thomas Anderson produzira uma década antes.

Desta vez a coisa repete-se – são três histórias de amor envolvendo três casais em três locais distantes (Nova Iorque, Paris e Roma) – mas não cola, decididamente, ou, pelo menos, não cola como se esperava que colasse. Talvez o problema de «Na Terceira Pessoa» esteja em que Haggis, que possa estar com o mesmo problema da personagem central, interpretada por Liam Neeson (novamente tão voluntarioso quão abrutalhado), i.e., em crise de inspiração, ou, quem sabe se do lado de cá se colocou a Haggis uma fasquia demasiado alta.

Seja como for, «Na Terceira Pessoa», apesar de parecer muito mais adequado a um imaginário televisivo, não é de modo nenhum um filme despiciendo, antes pelo contrário: os diálogos vivos e certeiros (sobretudo aqueles do jogo do gato e do rato entre as personagens de Neeson e Olivia Wilde, uma dupla de estalo - que remetem para Hepburn & Grant), uma montagem eficaz e um punhado de belas interpretações (Wilde, Bello e Brody fazem o que querem das cenas em que entram), tornam este filme sobre confiança e traição – «com a verdade me enganas» - e um imenso sentimento de culpa, num produto final simpático e de digestão pausada. Se é de manter a confiança em Haggis e mandar-lhe rosas brancas à cabine? Sim, claro.


In O Diabo (29.7.2014)

terça-feira, julho 22, 2014

Filmes em revista sumária #462


Desengane-se quem for ver «O Teorema Zero» a pensar nalguma sequela, ou actualização, do já mítico «Monty Python, O Sentido da Vida» (1983). É que, se à partida havia uma dupla coincidência entre ambos filmes – os realizadores, Gilliam e Jones, partilham do mesmo nome próprio, e o dito sentido é também agora o centro das atenções neste filme de Terry Gilliam- a verdade é que apenas a coincidência de nomes pode sustentar tal ilusão.

«O Teorema Zero» é um filme claramente de Gilliam e de mais ninguém. E se o autor daqueles portentosos intercalares, feitos de colagens animadas mais ou menos toscas, que marcaram de forma corrosiva e indelével a saudosa série «Monty Pyhton, Flying Circus», conta já com 73 anos, ele mantém intacta a sua irreverência, embora, naturalmente, a tendência seja para se plagiar a si próprio, encalhando nalguns dos detalhes que marcaram os seus filmes mais notórios (a careca de Waltz é a de Willis, em «Os 12 Macacos», a rapariga da «pizza» é a dos telegramas cantados de «Brazil», os tubos para «download», idem, etc.) – e demos graças por ter enterrado o psicadelismo de «Fear and Loathing in Vegas».

Ao invés das partes gagas que glosavam, com apurado sentido humor, o tal «sentido da vida» em 1983, a coisa agora é por séria e simbólica, entre sagrado e profano – o protagonista, Qohen Leth, vive numa antiga igreja e dorme nos tubos do órgão, voz de Deus, e na cabeça de Cristo está uma câmara de videovigilância, ligada ao «patrão» de Leth -, esotérica, pessimista: só mergulhando no vórtice negro (o poço, por contraponto à luz) do seu desafio pessoal (revisitação do anjo de «Brazil»?), ele alcançará o sentido da vida, depois de conhecer, enfim, sacrificar, o amor real, proporcionado cibernauticamente, em visão paradisíaca a dois.

Lição para as redes sociais e para o vício do dedilhar frenético das teclas dos nossos dias? Sim. Há poesia no filme? Sim. Todos nós esperamos por um telefonema que nos explique o sentido da vida? Claro. A equação que nos move é resolúvel? Talvez. Acaba mal, pois acaba, é inevitável.

Já «nos» íamos esquecendo: Christoph Waltz é um actor superlativo; encontrado tardiamente (Leth também), mas ainda a tempo, uf. Tilda Swinton está um deslumbramento, virtual.


In O Diabo (22.7.2014)

quarta-feira, julho 16, 2014

Filmes em revista sumária #461


Intenso, intimista, hipersensível, crú, arrebatador e profundamente dramático. Assim se resume «Violette», o novo filme de Martin Provost (não confundir com Prévost…), que depois de ter biografado a pintora Séraphine de Senlis, realiza este «biopic» sobre Violette Leduc (não confundir com Viollet-le-Duc…), a escritora sensacionalista dos idos do pós-guerra de 1939-45, que acumulava à condição de mulher sexual e socialmente reprimida, feita contrabandista, para sobreviver, a de romancista frenética (na primeira pessoa) em contínuo turbilhão criativo, e a que a protecção de Simone de Beauvoir haveria de conseguir consagrar anos mais tarde, à custa de muita tenacidade, sofrimento e reveses.

Visualmente soberbo, graças ao apurado sentido estético de Yves Cape (veja-se o belíssimo tratamento do claro-escuro, por exemplo), e com uma encenação tipicamente francesa (academismo? sim, e daí?), no tratamento dos cenários e da reconstituição de época (a todos os níveis), «Violette» assenta ainda em duas performances soberbas: a de Emmanuelle Devos, na pele da boçal, desiludida e desconcertante protagonista (ele é todo um frémito quando, raivosa, atira à cara da mãe: «tu tiveste-me!»), e a de Sandrine Kiberlain, na da celebérrima feminista autora de «Os Mandarins». Nelas e num punhado de secundários irrepreensíveis em outras tantas personagens riquíssimas (a mãe, o perfumista, etc.).

A cena, rodada em «travelling» ao longo de um muro de pedra e de uma correnteza de árvores, sob o céu azul da Provença, em que vemos Violette solta e decidida a viver pela escrita, é inolvidável. Tal como a frase (em francês, é obrigatório): «Je m'en irai comme je suis arrivée. Intacte, chargée de mes défauts qui m'ont torturée. J'aurais voulu naître statue, je suis une limace sous mon fumier».

NB: E que tal alguém reeditar em português as obras de Violette? É que só nos alfarrábios se pode alguma das velhinhas edições da saudosa Portugália.


In O Diabo (15.7.2014)

terça-feira, julho 08, 2014

Filmes em revista sumária #460


Reduzir-se «Locke» ao espantoso «one man show» que Tom Hardy consegue neste filme de estreia de Steven Knight, é injusto, desde logo para com a excelência do argumento e da realização – prender-se o espectador do princípio ao fim da maneira que o realizador consegue neste filme minimalista, de modo tão original e com tamanho bom gosto, é obra (o recurso a uma câmara hiperactiva e imaginativa talvez tenha sido a chave do sucesso); ingrato, uma vez que o realizador dá uma tremenda lição de como fazer muito bom cinema sem recorrer a exorbitâncias e extravagâncias, e redutor, pois o título do filme não está lá por acaso, a ideia é mesmo remeter o espectador mais atento para o postulado do filósofo homónimo: o de que à nascença somos um conjunto vazio, nada, e que só à medida que vamos tomando consciência e ganhando experiência nos vamos moldando, por nós próprios, como seres humanos – daí a vontade férrea do protagonista em não querer ser igual a seu pai.

Além disso, se Tom Hardy é omnipresente e é (tem aqui uma interpretação riquíssima, enquanto Ivan Locke, usando de uma paleta dramática de expressões e impressões, de uma força impressionante), o filme não seria o mesmo se não tivesse o “apoio” da plataforma de comunicação para distâncias curtas (são cerca de 200km entre Birmingham e Londres) denominada Bluetooth (passe a publicidade), que lhe (nos) permite a interacção com uma série de vozes, também elas de uma tal tensão dramática que rapidamente se transformam em personagens de carne e osso, com alma.

Moral da história: uma decisão mal tomada (no caso, «a diferença entre nunca e uma vez é a diferença entre bem e mal») pode implicar alterações terríveis nas nossas vidas. Irreversíveis? Nem por isso.


In O Diabo (8.7.2014)

terça-feira, julho 01, 2014

Filmes em revista sumária #459


Esta premiada co-produção hispano-canadiana chamada «O Homem Duplicado» (ibero-canadiana, se pensarmos que a mesma tem por base o título homónimo do português José Saramago), com argumento assinado pelo espanhol Javier Gullón e realização do canadiano Denis Villeneuve (já repararam quantos nascidos no país da folha de ácer têm este apelido?), é realmente um enigma perturbador, do primeiro ao último fotograma, fazendo jus aos escritos de alguns outros gigantes das letras, Dostoievsky e William S. Burroughs, por exemplo, onde a dupla de autores terá ido «beber», mas também ao cinema abundantemente alucinado de Cronenberg, também ele canadiano, por acaso, ou não.

À partida, a história parece banalíssima: um homem tem uma vida dupla, que, inocentemente, ignora, perdido que anda no meio das suas aulas de história e teoria política para universitário consumir, mirtilos gelados e «shows» eróticos secretos à «Eyes Wide Shut», mas que se torna gradualmente labiríntica e demente a partir do momento em que, na última daquelas cerimónias, uma tarântula é esmagado sob o salto-alto da «stripper» de serviço.

Contudo, é só aparência, rapidamente nos deparamos com algo de mais profundo: um imenso drama psicológico, uma teia alegórica (aranha-mulher-mãe), que cada qual interpretará ao seu bel-prazer, que enreda e absorve a personagem central (interpretada por um Jake Gyllenhaal sempre impressionante) de tal maneira que nem à bruta parece romper-se, e não rompe, de facto – é numa deixa da mãe (evidentíssimo, aliás, o piscar de olhos a «If I Were a Spider», da série Green Porno, da própria Isabella Rosselini) que reside a chave para se deslindar onde está a realidade.

Um filme que não dirá muito aos terra-a-terra, mas que é bom quebra-cabeças para quem gosta de conversar e de reflectir sobre o que acaba de ver. Em bom rigor, não há como escapar da aranha.


In O Diabo (1.7.2014)